segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Resposta ao Vídeo do Clarion

Objetização da Mulher


Clarion, em primeiro lugar, parabéns pela iniciativa. Achei muito legal essa idéia.
=)

Respondendo às questões...

Sim, a objetificação da mulher existe. Acho importante definir um pouco as coisas. Quando se fala em objetificação (ou objetização, como tu usaste, acredito que ambos estejam corretos) no sentido que geralmente é utilizado (pejorativamente) se resume a condição da pessoa a objeto.
Aqui entra a questão de ser biológico ou cultural. Biologicamente, homens e mulheres são vistos uns pelos outros como objeto sexual, de alguma forma, porque a sexualidade faz parte do ser humano. O problema, e aí é cultural, é quando limitamos a existência do outro à condição de objeto sexual. Nesse sentido, sim, é possível e desejável combater a objetificação feminina.
Acredito que o ponto central da questão seja a autonomia. O problema não é a mulher usar roupas curtas. O problema não é a mulher usar uma burca, que seja. O ponto é o quão autônoma é essa decisão. Claro, aí entramos num território bem complicado, pois a sociedade também pesa muito na hora de decidir algo. Mas enfim, isso daria muita discussão ainda, não é a minha pretensão desenvolver o tema aqui.
Um bom exemplo, na minha opinião, foi a Marcha das Vadias que aconteceu em várias cidades brasileiras. O objetivo da marcha é a luta contra a violência sexual e a objetificação feminina, sendo que algumas mulheres deixam os seios a mostra durante a Marcha para demonstrar que, mesmo estando parcialmente despida, homem (ou mulher?!) nenhum tem o direito de tomar posse do seu corpo sem consentimento. Pois bem... muitas críticas foram lançadas às meninas que tiraram a blusa na Marcha. Agora, desfilar sem roupa no Carnaval pode, porque aí é uma "manifestação cultural". Em outras palavras, não pode fazer uma manifestação PACÍFICA mostrando os seios em prol do fim da violência contra a mulher, mas pode mostrar os peitos na Sapucaí pra passar na TV. Não sou contra os desfiles de carnaval, cada um é dono do seu nariz. Mas convenhamos: tem algo errado nesse raciocínio, né?
Bem, acredito que o "puritanismo" também seja uma forma de objetificação, na medida em que a mulher "se tapa" em prol de exigências sociais, temendo receber um julgamento moral negativo caso se comporte de outra forma. Claro, aí também entra a questão da autonomia, não vejo problema nenhum na mulher que se sente mais confortável sendo mais discreta, como não vejo problema que outras se exibam mais.
Assim, não vejo nenhum problema na mulher (ou o homem, por que não?) que escolha explorar sua beleza ou sexualidade de alguma forma (profissionalmente ou de maneira informal, digamos). Perceba que aí se muda um pouco da condição de objeto, apesar de ainda assim haver consumo. Por exemplo, não sou contra pornografia ou prostituição, desde que não haja exploração, abuso, menores de idade ou incapazes envolvidos e que se garantam condições dignas de trabalho. Pra mim é uma profissão como as outras, e por isso também não julgo os "consumidores", desde que observadas as condições colocadas.
Por fim, a empresa... acho que vai muito da forma que a coisa é feita. Colocar a mulher como objeto, serviçal, prêmio, "pedaço de carne" para o homem, sim, acho que é ofensivo e reforça a objetificação já existente na nossa sociedade. Não que alguém vá se tornar mais "explorador" ao ver um comercial, mas naturaliza a ideia, faz parecer que é super normal colocar a mulher nessa posição (vide comercial da Axe "acumule mulheres", "celular de homem não tem agenda, tem cardápio"). Agora, dá perfeitamente pra se utilizar da beleza da mulher (e do homem!) num comercial/anúncio publicitário de forma sadia. Basta colocar a pessoa numa situação em que ela é sujeito de sua ação, e não colocar a beleza/sexualidade como se fosse o único atributo possível daquela pessoa (ou pior, daquele gênero).
Pessoalmente, uma coisa que me intriga muito é o fato de eu não lembrar ter visto até hoje um comercial com mulheres demonstrando que gostam de beber cerveja. Apesar de hoje em dia as mulheres beberem quase tanto quanto os homens, ainda somos retratadas como objetos sexuais nos comerciais. Pena.

Acho que era isso...
Desculpe pelo longo texto, espero ter contribuído.
=)

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Repulsa ao sexo

Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo

Entre os três candidatos à Presidência mais bem colocados nas pesquisas, não sabemos a verdadeira posição de Dilma e de Serra. Declaram-se contrários para não mexer num vespeiro que pode lhes custar votos. Marina, evangélica, talvez diga a verdade. Sua posição é tão conservadora nesse aspecto quanto em relação às pesquisas com transgênicos ou células-tronco.

Mas o debate sobre a descriminalização do aborto não pode ser pautado pela corrida eleitoral. Algumas considerações desinteressadas são necessárias, ainda que dolorosas. A começar pelo óbvio: não se trata de ser a favor do aborto. Ninguém é. O aborto é sempre a última saída para uma gravidez indesejada. Não é política de controle de natalidade. Não é curtição de adolescentes irresponsáveis, embora algumas vezes possa resultar disso. É uma escolha dramática para a mulher que engravida e se vê sem condições, psíquicas ou materiais, de assumir a maternidade. Se nenhuma mulher passa impune por uma decisão dessas, a culpa e a dor que ela sente com certeza são agravadas pela criminalização do procedimento. O tom acusador dos que se opõem à legalização impede que a sociedade brasileira crie alternativas éticas para que os casais possam ponderar melhor antes, e conviver depois, da decisão de interromper uma gestação indesejada ou impossível de ser levada a termo.

Além da perda à qual mulher nenhuma é indiferente, além do luto inevitável, as jovens grávidas que pensam em abortar são levadas a arcar com a pesada acusação de assassinato. O drama da gravidez indesejada é agravado pela ilegalidade, a maldade dos moralistas e a incompreensão geral. Ora, as razões que as levam a cogitar, ou praticar, um aborto, raramente são levianas. São situações de abandono por parte de um namorado, marido ou amante, que às vezes desaparecem sem nem saber que a moça engravidou. Situações de pobreza e falta de perspectivas para constituir uma família ou aumentar ainda mais a prole já numerosa. O debate envolve políticas de saúde pública para as classes pobres. Da classe média para cima, as moças pagam caro para abortar em clínicas particulares, sem que seu drama seja discutido pelo padre e o juiz nas páginas dos jornais.

O ponto, então, não é ser a favor do aborto. É ser contra sua criminalização. Por pressões da CNBB, o ministro Paulo Vannuchi precisou excluir o direito ao aborto do recente Plano Nacional de Direitos Humanos. Mas mesmo entre católicos não há pleno consenso. O corajoso grupo das "Católicas pelo direito de decidir" reflete e discute a sério as questões éticas que o aborto envolve.

O argumento da Igreja é a defesa intransigente da vida humana. Pois bem: ninguém nega que o feto, desde a concepção, seja uma forma de vida. Mas a partir de quantos meses passa a ser considerado uma vida humana? Se não existe um critério científico decisivo, sugiro que examinemos as práticas correntes nas sociedades modernas. Afinal, o conceito de humano mudou muitas vezes ao longo da história. Data de 1537 a bula papal que declarava que os índios do Novo Continente eram humanos, não bestas; o debate, que versava sobre o direito a escravizar-se índios e negros, estendeu-se até o século 17.

A modernidade ampliou enormemente os direitos da vida humana, ao declarar que todos devem ter as mesmas chances e os mesmos direitos de pertencer à comunidade desigual, mas universal, dos homens. No entanto, as práticas que confirmam o direito a ser reconhecido como humano nunca incluíram o feto. Sua humanidade não tem sido contemplada por nenhum dos rituais simbólicos que identificam a vida biológica à espécie. Vejamos: os fetos perdidos por abortos espontâneos não são batizados. A Igreja não exige isso. Também não são enterrados. Sua curta existência não é imortalizada numa sepultura - modo como quase todas as culturas humanas atestam a passagem de seus semelhantes pelo reino desse mundo. Os fetos não são incluídos em nenhum dos rituais, religiosos ou leigos, que registram a existência de mais uma vida humana entre os vivos.

A ambiguidade da Igreja que se diz defensora da vida se revela na condenação ao uso da camisinha mesmo diante do risco de contágio pelo HIV, que ainda mata milhões de pessoas no mundo. A África, último continente de maioria católica, paupérrimo (et pour cause...), tem 60% de sua população infectada pelo HIV. O que diz o papa? Que não façam sexo. A favor da vida e contra o sexo - pena de morte para os pecadores contaminados.

Ou talvez esta não seja uma condenação ao sexo: só à recente liberdade sexual das mulheres. Enquanto a dupla moral favoreceu a libertinagem dos bons cavalheiros cristãos, tudo bem. Mas a liberdade sexual das mulheres, pior, das mães - este é o ponto! - é inadmissível. Em mais de um debate público escutei o argumento de conservadores linha-dura, de que a mulher que faz sexo sem planejar filhos tem que aguentar as consequências. Eis a face cruel da criminalização do aborto: trata-se de fazer, do filho, o castigo da mãe pecadora. Cai a máscara que escondia a repulsa ao sexo: não se está brigando em defesa da vida, ou da criança (que, em caso de fetos com malformações graves, não chegarão a viver poucas semanas). A obrigação de levar a termo a gravidez indesejada não é mais que um modo de castigar a mulher que desnaturalizou o sexo, ao separar seu prazer sexual da missão de procriar.


Fonte: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100918/not_imp611597,0.php